terça-feira, 31 de julho de 2007

A dificuldade social de ser quem se é

Folheava sua revista de forma lenta, sentindo cada ponta de papel roçar nos dedos. Era verdade que poderia estar lendo-a de cabeça para baixo e que não, não iria dar-se conta. Não hoje. O foco de sua pupila alcançava outra dimensão - mais precisamente a mesa ao lado, onde em sua cadeira repousava o dorso relaxado de um homem grisalho e de rosto quadrado. Ele mexia o líquido da xícara balançando-a no ar, em movimentos circulares e de freqüência constante, enquanto escrevia compenetradamente em um bloco de papel. Aquele ar de extrema competência intelectual deixava-a tonta. A forma como cruzava suas pernas, o joelho pousado sobre o outro, instigava-lhe ainda mais e ela só pensava em levantar e caminhar até ele. Um descuido viria, algo como "desculpe pisar no teu pé, que distração a minha!" e ela então poderia sentar-se e conversar sobre o frio dos últimos dias. Não, pensou. Esse já é desagradável até no elevador. Quem sabe então se passasse com a saia arriada até meia perna e mostrasse a cinta liga abraçada à coxa? Não, da última vez isso a teria feito tropeçar em meio ao movimento calculado de subir a saia e feito-lhe mostrar não só as pernas - um fiasco. O olhar compenetrado com que fitava o ambiente e retornava ao seu papel demonstrava uma sutileza e uma finesse que me tremia os lábios. Quem sabe conversar com o garçon mais próximo sobre o último filme do Godard? Criticar a cultura de massa? Arriscar uma ligação inventada e soltar um "ah, meu bem, obrigada pelos elogios, mas estou tão ocupada...!" ou lançar mão de um pedido de conselhos caindo aos prantos devido à fuga súbita do marido com a sobrinha, grávida do próprio irmão - e que venham as memórias de Nelson Rodrigues.

E a revista acabando. Culpou a própria falta de uma leitura mais requintada e de programas sociais menos focados em fazer as unhas ou assistir a novela das oito. À beira da desistência, resolve abandonar a xícara de chá e pede uma cerveja em alto e bom som, "e se tiver uma batatinha frita, manda ver", terminando a frase. Percebe aquela figura elegante, grisalha e com olhos indicativos de sua bagagem cultural vasta levantar de sua mesa e caminhar até a dela. Garganta seca, tentativa de uma falso desmaio. Olha pro lado, cobre a face com a revista " De fofoca ainda! Agora ferrou-se". Mas não. Ele se aproxima do ouvido dela e diz: "És uma gata, Ô! Posso tomar a cerveja com você e depois nóis sai pra fazer alguma?"

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Por favor, a conta?
Odiava ter que ser ela mesma.